sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O Domingo


A manhã de domingo começou de ressaca. Um ou outro foguete estourava, alguém se negando a perder qualquer hora do final de semana festivo. Agora seria no campo do véio joão a apresentação do Adão.
Ica acordou assustado, provavelmente sua mãe já tinha levado as vacas para o campo como era de costume. Ela não sabia que esse domingo era diferente. Olhou pela janela e lá estavam as vacas. Passou direto pela sua mãe e foi levar as mimosas  para outro lugar. De longe dava pra ver o Zé banha com uma cuia na mão gritando e apontando as vacas. Ica balançava a cabeça concordando. Com seu trote desengonçado seguia procurando o gudi ou o Sérgio com o olhar. Foi tocando as mimosas para fora do campo.
Manivela ia com uma enxada arrancando as touceiras que teimavam em nascer no gramado. Na saída par a rua Ica olhou para o gramado certificando-se que não tinha ficado nenhum monte de merda de vaca pra trás.
Zé banha e o manivela foram conferir a copa. Afinal eram filhos de Deus e devedores de impostos. Manivela olhou o campo com um orgulho contido. Seu pai ficaria muito contente com um jogo daqueles.
Depois do almoço desci na rua para ir com a gurizada ver o jogo. Já tinham ido para o campo. Fominhas, não me esperaram. "Tudo bem..." pensei. Atravessei o mato das batatas. Tinha me criado ali na volta. Pulei a sanga. Até banho já tinha tomado naquelas águas. Subi o barranco e cheguei no campo. Tentei me lembrar porquê chamavam de "mato das batatas", sendo que só tinha visto pés de pitangas e um pé de amora, por sinal das mais ruins e amargas que já tinha comido. Nós, quando morávamos na Abílio Rocha só dizíamos "matinho". Matinho e era isso.
Olhei em campo os veteranos estavam prontos pra começar o jogo. Adão estava lá no meio do campo. Pé direito em cima da bola e apoiado no joelho. Escutando as instruções do juiz. "Devo ter perdido o discurso."
Chego onde estão a gurizada e pergunto porquê não me esperaram. "Olha a hora..." Alguém diz.
Começa o jogo com o pontapé do Adão. Aqui no bairro não teve tantas cerimônias. Adão parecia feliz, mais disposto. Procurei pela Lui e não enxerguei.
Nem bem a bola rolou e o juiz já apitou falta a favor do time do Adão, que por instinto se posicionou na área. O time adversário era os Amigos do Adão. O nome era esse. Joca cobrou a falta que saiu longa. O Adão foi dar um pique para alcançar a bola e levou a mão na coxa e saiu mancando.
-Já. Falou o pino, com os olhos vermelhos de vinho.
O Adão permaneceu em campo mais uns vinte minutos. Afinal, são sessenta anos e essa lesão na coxa o acompanhava a muitos anos. Saiu ovacionado. A turma se olhou desconfiada. Já tínhamos uns anos também. Entendiamos um pouco mais de futebol.
- Nunca vi o Adão terminar um jogo. Acho que para falar a verdade, nunca vi um jogo até o fim.
O Eliseu deu risada e concordou. O juliano começou a contar histórias, mas eu estava muito desconfiado para acreditar. Olhei todas as pessoas reunidas, o ambiente em torno do campo e cheguei a conclusão que tudo aquilo era mentira.
O Adão era uma mentira como jogador e nós nunca fomos torcedores do Botafogo ou do Grêmio Alvorada. Estava desconstruindo a imagem de herói do Adão. Eram verdades que apenas eu via. Para as outras, aquele moreno atarracado e gordo era um craque.
Eu balançava a cabeça e me perguntava por quê não fiquei em casa olhando televisão...
Enquanto caminhávamos de volta para a rua, surgia histórias do Joca que uma vez estava jogando com um "22" na cintura. Correndo atrás da bola deixou cair o revólver, voltou, juntou o revolvinho e chegou em tempo de cruzar a bola na linha de fundo.
Todas as histórias soavam mentirosas, mas serviam para dar risadas. Escalações surgiam como por encanto, jogadores eram enumerados, postos para jogar e pareciam verdadeiras seleções. Fanha, Beiço. Coxa, um dos mais balaqueiros. Zé banha no gol, herdou a posição do Renato, filho do eterno candidato a vereador João dos Matos. Esse foi o fundador do Grêmio Alvorada. Outro sonhador.
Tinha a turma do beco. Varela, Conan com seu cabelo que nem se mexia. Buldogue que tinha cataratas nos dois olhos e o Maninho que jogava na frente com o Adão. Papai pela direita.
O pé-sujo, uma lenda viva dos bares de Cruz Alta. Também era atleta. Tocava violão e era um dos que puxava as sertanejas. Lembro dele do tempo que o Valdemar tinha um bar na esquina da Abílio Rocha com a Francisco Alves. Quem nunca foi no bar do Ebari? Só se nasceu de 2000 para cá. Quinho, Pedro e a lista nunca termina. Só minha paciência. Vou para casa arrumar minhas coisas. Tem a viagem de volta e a vida real começando a semana.
Uma mentira. Cada jogador daquele lugar era um mentiroso. Talvez tenha esquecido de muitos. Eram os anônimos que davam brilho para as tarde de domingo, naquele campo a beira de um mato. Algo que nunca mais será.

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